A produção e consumo de leite e derivados está inserida na cultura brasileira. O queijo, iogurte e os concentrados lácteos são alimentos que além do valor nutritivo, possuem um apelo emocional no seu consumo.
Quando tratamos de concentrados lácteos, principalmente, o doce de leite, estamos falando de um produto que está ainda mais enraizado na nossa cultura. E isto é refletido em estatísticas, o Brasil, (ao lado da Argentina) é um dos principais produtores de doce de leite do mundo, sendo o doce brasileiro um símbolo nacional e reconhecido mundialmente.
O leite condensado, desde a sua chegada ao Brasil (inicialmente vendido em farmácias, e posteriormente, em mercados), caiu no gosto da população e hoje representa uma parcela importante no consumo nacional de lácteos no país.
Assim como os sorvetes, no país, os concentrados lácteos são consumidos como sobremesas ou como seus coprodutos. Portanto, este tipo de produto está associado a momentos de prazer dos consumidores e qualquer tipo de defeito que ele possa ter, além de comprometer a integridade física de seu cliente, pode manchar de forma severa, a sua marca.
O avanço da tecnologia e mídias sociais, torna mais fácil a divulgação dos problemas encontrados em seu produto, pelo cliente insatisfeito. Isto dificulta, ainda mais, a contenção de um problema que poderia ser evitado dentro da fábrica.
Antes de entender como evitar problemas dentro da fábrica, precisamos compreender primeiro qual o perfil dos problemas que iremos encontrar nos lácteos concentrados. É normal imaginar que problemas microbiológicos são dificilmente encontrados em concentrados, devido a sua baixa atividade de água (cerca de 0,85 a 0,92), caracterizada pelo processo de concentração e alta concentração de açúcar. Porém, o maior vilão deste tipo de produto são os fungos e leveduras. Eles se desenvolvem preferencialmente em faixas de atividade de água entre 0,75 e 0,80, não tomando conhecimento das características dos concentrados, que seriam inibidoras para outros tipos de microrganismos.
Bactérias patogênicas também não devem ser esquecidas, pois apesar de não resistiram aos rigorosos processos que o leite é submetido durante a concentração, podem liberar no produto componentes que irão prejudicar o consumidor final.
Os processos de concentração que o leite é submetido, de fato, inibem grande parte dos problemas microbiológicos que outros produtos lácteos geralmente têm, porém estas etapas rigorosas também são uma das principais razões por problemas físico-químicos no produto final.
Os defeitos tecnológicos em produtos lácteos concentrados são: fungos e leveduras; cristalização da lactose; precipitação das proteínas; escurecimento; e problemas de consistência.
Os fungos e leveduras são resistentes aos baixos índices de atividade de água e alta concentração de açúcar, portanto, a melhor maneira de combater esse vilão microbiológico em lácteos concentrados são as Boas Práticas de Fabricação (BPF). O cuidado com o BPF deve ser extremo, principalmente em salas de envase, pois é onde o produto está mais exposto ao ambiente. Desta forma, garantir que o aceso a estes locais seja restrito, que os colaboradores estejam sempre usando itens de proteção e treinados quanto as consequências da não adesão as boas práticas são fundamentais. A limpeza dos equipamentos e controle do ambiente também se tornam essenciais para evitar a contaminação do produto.
Outro ponto super importante é a hermeticidade das embalagens. Ou seja, o uso de embalagens vedadas sem contato com o ambiente. Quando tratamos de microrganismos, qualquer mínimo furo que a embalagem possua pode ser um portão de entrada para a contaminação. Portanto, o uso de técnicas existentes no mercado, feitas da forma correta e na frequência necessária para evitar esse tipo de problema se torna um fator importante, afim de evitar fungos e leveduras nos produtos. Temos, ainda, que ter atenção na esterilização da embalagem, usando luz ultra violeta ou outras técnicas.
O cuidado com a embalagem não termina com o envase. O treinamento de toda equipe é importante para que durante a estocagem e movimentação das caixas com o produto em centros de distribuição, quedas e outras situações provoquem danos a embalagem e jogue todo o trabalho no lixo. Para o doce de leite é permitido por lei o uso de sorbato de potássio, que evita a contaminação dos alimentos, já que oferece qualidades fungicidas e bactericidas, impedindo o crescimento de bolores e leveduras.
Um dos principais problemas em concentrados lácteos, a cristalização conta com uma solução bem simples, que se aplicada corretamente, evita esse problema. Quando retiramos a água do leite, os componentes lácteos se concentram, ou seja, as partículas de proteína, gordura, sais e, principalmente lactose, se aproximam. Este processo de concentração afeta o equilíbrio destes componentes. Em uma tentativa natural de retomar o equilíbrio, a lactose tende a se unir. Com o tempo, esses cristais provenientes desta união se tornam perceptíveis em nosso paladar. Além do problema de ter um produto fora do padrão, os cristais de lactose que deixam o produto arenoso - e dependendo do caso, pode gerar até cristais maiores – podendo, confundir o consumidor, o fazendo acreditar que existe uma contaminação física no produto, como areia ou até mesmo pedaços de vidro!
Portanto, para evitar que isso aconteça, devemos fazer a cristalização induzida ou semeadura. Já ouviu aquela frase: "se não pode evitar um problema, una-se a ele”? Já que a lactose quer retomar seu equilíbrio, não iremos atrapalhar, mas sim ajudá-la. A semeadura, nada mais é do que a adição de cristais de lactose bem pequenos (cerca de 1μm), conhecidos como núcleos ou sementes, no produto final. Esta adição deve ser feita sob uma temperatura ideal de 26ªC a 35ªC para induzir a saturação dos cristais de lactose sob agitação durante cerca de 40 a 60 minutos. Desta forma, os cristais de lactose do produto se ligam aos cristais de lactose adicionados durante a semeadura. Sendo assim, a lactose alcança seu equilíbrio e não "procura" mais outros cristais para se unir, impedindo seu crescimento no produto.
Outra forma de controlar este problema é o aumento da viscosidade, que dificulta o encontro dessas lactoses durante o tempo de prateleira. Porém, o aumento da viscosidade não garante que não ocorrerá a cristalização, apenas a dificulta, portanto, para garantir que não ocorrerá o problema, use o método de semeadura.
A adição da enzima lactase também evita a formação de cristais, pois com a hidrolise da lactose fica impossível a cristalização. Mas, a utilização da lactase configura em um novo produto, devendo ser indicado no rotulo o uso desse insumo!
A precipitação das proteínas (talhado) é um problema comum em muitos produtos lácteos, por conta de uma situação mais comum ainda: falta de BPF! A falta da implementação das boas práticas de fabricação desde a coleta do leite e sua manipulação dentro da fábrica, interferem diretamente na precipitação proteica.
Vamos tratar este problema por partes! O primeiro ponto é evitar que uma matéria-prima de baixa qualidade entre na fábrica. Quando falamos de concentrados lácteos, isto se faz mais importante ainda, pois os rigorosos processos de aquecimento do leite, quando aplicados em um leite que já está acidificado, pode fazer com que as proteínas precipitem já no pasteurizador! Isso pode entupir as placas e gerar um desgaste enorme de parada de máquina para limpeza. Tempo é dinheiro e na indústria isto é muito mais visível. Portanto, a boa análise da matéria-prima em seu recebimento já diminui a chance do produto talhar, mas não adianta ter um leite de boa qualidade se não cuidar dele dentro da planta. Seguir as boas práticas de fabricação, manter a temperatura do leite nos parâmetros indicados pela legislação e realizar a limpeza correta dos tanques e linhas é essencial para que não tenha problema de acidez gerada por microrganismos e, consequentemente, a precipitação das proteínas, que ficam instáveis devido a presença do ácido láctico no leite.
Desejado em alguns produtos, como no doce de leite, evitado por outros, como no leite condensado e leite evaporado, o escurecimento que ocorre nos produtos lácteos é conhecido como não enzimático, ou seja, diferente do que acontece com as frutas, como maçã e banana, não necessita de uma enzima para a coloração surgir.
A reação de escurecimento que acontece em produtos lácteos é chamada Reação de Maillard e, apesar de não necessitar de ação enzimática para que aconteça, existem alguns requisitos a serem cumpridos.
O açúcar redutor é o primeiro requisito. Explicando de uma forma simples, o açúcar redutor é o carboidrato que possui presença de um grupo aldeído ou cetona livre, ou seja, este grupo está disponível para reagir. A lactose é um açúcar redutor e está em abundância no leite, facilitando a Reação de Maillard.
O segundo requisito é a dupla mais famosa do mundo alimentício: o binômio tempo/temperatura. Muitas reações necessitam de temperatura para acontecerem e, consequentemente, precisam de um tempo para reagir. Quando falamos em retirada de água do leite, estamos falando de temperaturas elevadas para realizar a evaporação, portanto, mais um dos requisitos é facilmente alcançado em nossos processos.
O terceiro ponto não é um requisito, mas um catalizador da reação. O pH alcalino não é necessário para que a reação ocorra, porém acelera bastante a reação, se tornando um dos pontos importantes para o controle da Reação de Maillard na indústria.
Agora que entendemos melhor estes 3 pontos, como controlá-los? O primeiro ponto, a lactose - a menos que você use um processo de filtração por membranas - não pode ser removida do produto.
Hidrolisá-la com a enzima lactase escurece mais o produto - afinal, "quebrando" a lactose você terá dois açúcares redutores (glicose e galactose) ao invés de um, sendo está a explicação do porquê produtos "sem lactose" são levemente mais escuros.
O tempo é algo inerente do processo. Você pode reduzi-lo, porém terá consequências em outros aspectos. Portanto, nos resta a temperatura. No leite condensado, uma das formas de controlar a temperatura é por meio do vácuo. O uso da pressão negativa (vácuo), faz com que a água do leite seja evaporada em temperaturas mais baixas, que inibe um pouco a Reação de Maillard.
Em produtos onde você deseja uma coloração mais acentuada, como o doce de leite, além do maior tempo/temperatura (alcançado facilmente durante a cocção no tacho), o uso de bicarbonato de sódio para elevar o pH se faz necessário para aumentar a estabilidade proteica e evitar que se precipitem.
A consistência é um problema que comumente ocorre dentro da fábrica durante o processo. Vários fatores influenciam diretamente na viscosidade do produto, como densidade e extrato seco, porém existe um fator que, de forma simples, pode ser controlado durante o processo: a desnaturação proteica. O leite possui duas formas de proteínas: a micela de caseína e a proteína do soro, a betalactoglobulina, a qual se encontra na forma de um novelo de lã e, quando aquecida, desnatura, se tornando um fio. Esta desnaturação faz com que a proteína do soro se ligue a micela de caseína por meio de uma ponte de sulfato. Com esta ligação, a proteína do leite consegue reter mais água, aumentando a viscosidade do produto. Sendo assim, o controle da viscosidade do produto pode ser feito na pasteurização, aumentando a temperatura e o tempo de retenção, quando quiser um produto mais consistente ou, abaixando a estes mesmos parâmetros quando desejar um produto menos viscoso.
Outra forma de controlar esta viscosidade é por meio de um tanque de equilíbrio alocado após a concentração, onde o controle da consistência será feito através do nível do tanque. Aumentando o nível do tanque, o produto maior permanece mais tempo sob uma temperatura elevada, causando maior desnaturação proteica, maior retenção de água e, logo, maior consistência. Já para diminuir a consistência, o nível do tanque deve ser menor, garantindo a baixa permanência do produto sob temperatura elevada, impedindo maior desnaturação proteica, causando menor retenção de água e viscosidade mais baixa.
Evitar estes defeitos comuns em lácteos concentrados além de impedir prejuízos financeiros, pode garantir uma boa experiência para o consumidor com o seu produto e fortalecer a sua marca.
Fonte: Milk Point