É bem provável que já tenha ouvido algum boato a respeito do leite de caixinha. Vez ou outra este produto está nos holofotes, a grande maioria das vezes, por alguma fake news. É até compreensível o motivo: as pessoas costumam desconfiar do que elas não conhecem. Como assim, o leite dentro dessa caixa dura quatro meses? Com certeza tem algum segredo aí.
Pois é, existe um segredo. Não é um grande truque, mas apenas a aplicação de dois princípios ao longo do processo que fazem com que o leite da caixinha tenha as propriedades que conhecemos, mas sem deixar, nem por um segundo, de ser leite.
Mesmo dentro da indústria, existem muitas dúvidas a respeito deste produto, principalmente sobre as etapas do processo. Em um cenário onde a produção de leite UHT só aumenta, inclusive com implantação de novas fábricas, não é má ideia compreender o básico de como uma linha dessas funciona.
Existe uma fixação com o leite de caixinha. De todos os derivados lácteos, esse é o maior alvo de notícias maldosas. Esse fascínio não é totalmente sem fundamento.
As pessoas estão acostumadas com o leite. Desde alguns milhares de anos antes de Cristo, o leite já fazia parte da dieta. E desde aquela época, o leite estraga. É isso. Não adianta ferver, coar, refrigerar. Em no máximo uma semana, já era.
Leite é um alimento extremamente perecível. Essa é a verdade com a qual convivemos a mais de 6.000 anos. Mas aí, por volta de 1950, surgiu um “novo leite” que dura alguns meses. E pior, nem precisa manter na geladeira. Só pode ser bruxaria! Mas essa grande revolução é muito menos glamurosa e dramática do que parece. Em linhas gerais, o leite UHT é a soma de dois conceitos bem simples: tratamento térmico e assepsia.
O primeiro, o tratamento térmico, aquece os alimentos eliminando os microrganismos causadores de doenças e, de quebra, retarda a deterioração. Funciona no leite, na carne, na batata e em basicamente qualquer alimento. Quase nada que comemos é cru. O segundo, a assepsia, higieniza os recipientes e utensílios, evitando novas contaminações. Exercitamos bastante esse conceito nessa pandemia, com a utilização do álcool em gel nas mãos e nos nossos pertences.
Falando assim, parece fácil. Porém, foi preciso que a tecnologia evoluísse bastante para permitir uma aplicação prática desses conceitos em uma escala industrial. Vamos entender isso olhando para os principais equipamentos em uma linha UHT moderna.
Dando uma olhada na legislação, temos que o leite UAT (Ultra Alta Temperatura), é o leite homogeneizado que foi submetido, durante dois a quatro segundos, a uma temperatura 130º C (ou equivalente), mediante um processo térmico de fluxo contínuo, imediatamente resfriado a uma temperatura inferior a 32º C e envasado sob condições asséptica em embalagens estéreis e hermeticamente fechadas.
Em resumo, trata-se de um leite que passa por um processo térmico capaz de eliminar toda microbiota, mas que é, em seguida, colocado em uma embalagem esterilizada. Não dá pra separar as duas coisas.
Leite limpo em embalagem suja ou leite sujo em embalagem limpa não funciona. Para resolver esse problema, as indústrias de laticínios usam um processo semelhante ao de uma linha UHT. Tudo começa na pasteurização do leite. Mesmo sabendo que o leite já vai passar por um tratamento térmico elevado, isso não elimina a necessidade de pasteurizá-lo. O tratamento térmico prévio ajuda a diminuir a carga original de bactérias, o que diminui a intensidade do tratamento definitivo.
O fluxograma de fabricação do leite de caixinha é composto pelas seguintes etapas: Recepção; Padronização; Pasteurização (adição de estabilizantes); Estocagem; Homogeneização; Esterilização; e Envase.
Na esterilização do leite acontece o tratamento que dá o nome ao leite de caixinha. Ultra High Temperature é bem adequado a um processamento térmico de mais de 140°C.
O esterilizador é um trocador de calor que aquece o leite até a temperatura desejada pelo tempo necessário, e depois resfria. Esta não é uma tarefa fácil quando pensamos no leite, um produto que ferve a 98°C (nível do mar). Basicamente, existem doi tipos de esterilizadores: aquecimento indireto, onde o leite é aquecido dentro de placas e tubos, que são aquecidos com vapor por fora. Funciona de forma muito similar a um pasteurizador; e aquecimento direto, onde o vapor é injetado diretamente no leite, dentro de uma câmara especial, similar a uma câmara de secagem. A grande diferença é que essa câmara possui mecanismos para remover o vapor injetado, evitando uma adição de água ao produto. Por entrar em contato com o leite, o vapor precisa ser de grau culinário.
Esse processo todo demora de dois a quatro segundos. Toda a construção dos esterilizadores precisa garantir que o leite permaneça o mínimo possível exposto as altas temperaturas, para que não ocorra a queima do leite, ou precipitação de proteínas.
As envasadoras de leite UHT são um espetáculo à parte dentro de uma indústria. É até simplório defini-las apenas como máquinas de envase. As máquinas de envase asséptico atuam desde dobrar, cortar e montar as caixinhas. Estamos falando de um ambiente estéril. O mínimo contato das embalagens com o ambiente pode colocar todo o processo a perder. A única coisa que o operador faz é alimentar a máquina com o papel cartonado (bobinas ou cartões pré-formados). Dali para frente, zero contato com o ambiente externo. Por isso a necessidade de a máquina executar tudo.
Dentro da máquina também ocorre a esterilização da embalagem pouco antes dela receber o leite. Por terem que manter um ambiente descontaminado, essas envasadoras também são dotadas de diversos sensores e travas, impedindo que funcionem se estiverem abertas. Após o envase, a própria máquina se encarrega de soldar a embalagem e só então, liberar a caixinha para o ambiente externo.
Qual é a diferença entre o leite pasteurizado e o de caixinha? Essa é uma pergunta bastante comum quando estamos falando de leite UHT. Afinal, o leite pasteurizado também passa por um tratamento térmico e é envasado logo em seguida. Qual a diferença?
A diferença é justamente a magnitude dos tratamentos. O leite pasteurizado é aquecido a uma temperatura de 72°C por 30 segundos, o que é suficiente para matar microrganismos causadores de doenças, mas ainda restam alguns deteriorantes no leite. O tratamento no envase também é diferente. O leite pasteurizado é acondicionado em sacos ou garrafas previamente limpas, mas o ambiente não é estéril.
Vale mencionar que, após a esterilização do leite, todos os equipamentos são necessariamente assépticos. Desde tubulações e bombas até tanques. Em uma planta UHT, não é possível ver leite após o esterilizador. Todo o circuito é fechado para evitar contaminações.
Além dos controles citados acima, existem diversos protocolos criados para evitar problemas. É comum em uma linha UHT os próprios equipamentos “pedirem” limpeza. Vale tanto para o esterilizador quanto para a máquina de envase. Nesse estado, não é possível envasar o leite, a não ser que a limpeza seja realizada. Uma garantia e tanto para nós, consumidores.
Você pode estar se perguntando onde são adicionados os conservantes. Na verdade, eles não são necessários e nem mesmo permitidos. O processo descrito aqui já garante o leite que conhecemos.
Os aditivos (fosfatos), estes sim permitidos, são adicionados no leite em algum momento antes da esterilização. Estes fosfatos ajudam as proteínas do leite a resistirem às altas temperaturas sem precipitar. Isso garante que o equipamento funcione mais tempo sem paradas e principalmente, que o leite não separe fases dentro da caixinha.
No fim das contas, não existe nada de muito especial em uma produção de leite longa vida. É apenas uma sucessão de processos bem definidos e encaixados de maneira correta. É uma maravilha da tecnologia, da ciência e da modernidade.
As etapas descritas acima são as mesmas para linhas de sucos, bebidas, sobremesas e tudo mais envasado de forma asséptica, ou ao menos os conceitos.
Fonte: Milk Point