A nova ordem regulatória: como a conformidade deixou de ser custo para virar estratégia

No complexo tabuleiro de xadrez da indústria global de ingredientes para alimentos e bebidas, os quadros regulatórios evoluíram de simples barreiras burocráticas para os principais impulsionadores da estratégia, inovação e acesso ao mercado. A capacidade de antecipar e dominar estas regras define agora o sucesso de toda a cadeia de valor, desde o produtor da matéria-prima até ao produto final na prateleira. Esse tema, inclusive, foi um dos destaques da FiSA 2025, e atrai cada vez mais os esforços das empresas do setor, afinal, o cenário nunca foi tão complexo.
De um lado, a pressão por inovação acelera, com novas tecnologias capazes de criar ingredientes antes impensáveis. Do outro, uma teia cada vez mais densa de regulamentações nacionais e internacionais exige um nível de diligência sem precedentes. O período em que a regulamentação era uma responsabilidade reativa de um departamento isolado terminou. Hoje, ela dita a estratégia de sourcing, influencia a inovação em P&D e molda a narrativa de marketing.
Analisamos as três frentes regulatórias que estão redefinindo as regras do jogo para o setor de ingredientes no período pós-2025.
Frente 1: A sustentabilidade – Da rastreabilidade à barreira comercial
A maior mudança disruptiva no comércio internacional de ingredientes vem da Europa, mas o seu impacto é global. O Pacto Ecológico Europeu (EU Green Deal) está se traduzindo em legislações que transformam a sustentabilidade de um diferencial de marketing numa condição para o acesso ao mercado.
A fonte desta mudança é a própria Comissão Europeia, que promulgou o Regulamento da UE sobre Desflorestação (EUDR). Conforme as suas diretrizes, a partir de 2025, empresas que importam para a UE matérias-primas como cacau, café, soja, palma e seus derivados (lecitinas, proteínas, extratos, óleos) devem provar, através de diligência prévia e dados de geolocalização por satélite, que os seus produtos não provêm de áreas desflorestadas após 31 de dezembro de 2020. Organizações como a Organização Mundial do Comércio (OMC) monitorizam de perto estas medidas, pois, na prática, elas funcionam como barreiras técnicas ao comércio (TBTs), exigindo uma reestruturação profunda das cadeias de fornecimento.
Para um fornecedor de ingredientes no Brasil, na Indonésia ou na Índia, isto significa que um dossiê de rastreabilidade auditável tornou-se tão importante quanto o certificado de análise do produto.
Frente 2: A era da hipertransparência – Rotulagem e a cientificidade das alegações
Paralelamente à pressão por sustentabilidade, há um movimento global por transparência no rótulo. A implementação da rotulagem nutricional frontal (FOPL), popularizada na América Latina, é um exemplo claro. No Brasil, a Resolução RDC 429/2020 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) instituiu o design de "lupa" para alertar sobre o excesso de açúcar, sódio e gordura saturada.
Estudos da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) sobre o impacto destas políticas em países como o Chile e o México demonstraram uma mudança significativa no comportamento de compra do consumidor. Este fenômeno obriga a uma intensa onda de reformulação e impacta diretamente o mercado de ingredientes: a procura por soluções de "redução e substituição" (fibras, adoçantes de alta intensidade, intensificadores de sabor) disparou.
Conforme relatórios de tendências de mercado da Mintel, a exigência por "rótulos limpos" (clean label) evoluiu. Os consumidores não querem apenas menos "químicos", mas também uma lista de ingredientes mais curta e compreensível. Ao mesmo tempo, o debate sobre as alegações de saúde nunca foi tão alto. Órgãos como a ANVISA e a sua congénere europeia, a EFSA (Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos), exigem dossiês científicos cada vez mais robustos para validar qualquer alegação funcional, elevando o custo e o tempo de entrada no mercado para novos ingredientes bioativos.
Frente 3: A fronteira da inovação – Harmonização e a aprovação de novos ingredientes
Enquanto as regras se apertam, a tecnologia avança. Ingredientes provenientes de fermentação de precisão, agricultura celular ou de fontes até agora inexploradas chegam ao mercado. Contudo, cada novo ingrediente enfrenta o desafio da aprovação regulatória, um processo que pode levar anos e variar entre regiões.
A harmonização de padrões continua a ser um objetivo central de organizações como a Comissão do Codex Alimentarius, que estabelece as bases globais para a segurança alimentar e serve de referência para as legislações nacionais. No entanto, a harmonização regional, como dentro do Mercosul, ainda avança lentamente. Esta assincronia cria complexidade para empresas que operam em múltiplos mercados, forçando-as a ter formulações diferentes para cada região.
O impacto estratégico na cadeia de valor
Esta nova ordem regulatória está forçando uma mudança fundamental na forma como as empresas operam. Agora, a seleção de fornecedores vai muito além do preço, exigindo auditorias de ESG (Ambiental, Social e Governança) e da capacidade de fornecer documentação de rastreabilidade.
Além disso, as equipes de P&D precisam trabalhar em conjunto com as equipes regulatória desde o primeiro dia do desenvolvimento de um produto, para garantir que os ingredientes escolhidos e as alegações pretendidas são viáveis. As empresas líderes também estão investindo em equipes e sistemas para monitorizar e antecipar mudanças regulatórias, transformando o que era uma função de conformidade reativa numa ferramenta de inteligência competitiva.
Ou seja, a regulamentação deixou de ser um obstáculo a ser contornado. Hoje, ela é como um guia para a inovação, a gestão de risco e o acesso aos mercados mais valiosos do mundo. As empresas que aprenderem a ler esse novo cenário não apenas sobreviverão, mas liderarão a indústria.



























