Formulação preditiva e IA: como algoritmos estão otimizando a sinergia entre fibras para atingir texturas impossíveis

Para qualquer cientista de alimentos que já passou semanas na bancada tentando otimizar a suculência de um hambúrguer vegetal ou a cremosidade de um queijo, o processo é conhecido: uma longa série de iterações, ajustes incrementais e, ocasionalmente, um "acidente feliz" que leva a um avanço. Este modelo tradicional de P&D, embora tenha nos trazido até aqui, é caro, demorado e limitado pela capacidade humana de testar variáveis. Agora, uma nova abordagem está mudando essa realidade: a formulação preditiva, impulsionada por Inteligência Artificial (IA) e Machine Learning.
Essas novas tecnologias prometem acelerar o desenvolvimento de novas soluções e alcançar combinações e texturas que seriam quase impossíveis de descobrir por meios convencionais.
O fim da tentativa e erro: da alquimia à ciência de dados
Tradicionalmente, a criação de uma nova formulação dependia da experiência e intuição do formulador. Sabia-se que a goma xantana aumenta a viscosidade e que o amido modificado melhora a estabilidade ao calor, mas a sinergia exata entre eles — e com outros componentes como proteínas, gorduras e minerais, sob diferentes condições de processo — era, em grande parte, uma caixa-preta.
A formulação preditiva troca a intuição pela análise de dados. Em essência, o processo funciona da seguinte forma:
- Alimentando o modelo (Input de dados): a primeira etapa, e a mais importante, é a criação de um banco de dados. Cada ingrediente é caracterizado por dezenas de parâmetros técnicos, como capacidade de retenção de água (WHC), capacidade de emulsificação, viscosidade em diferentes temperaturas, ponto de gelificação, perfil de sabor, custo e até mesmo dados de sustentabilidade.
- Definindo o objetivo: o formulador define o alvo desejado com precisão. Em vez de "quero um biscoito mais saudável", o objetivo torna-se "Reduzir o açúcar em 30% mantendo a mesma perceção de doçura e crocância (medida por TPA), com um custo máximo de X por quilo e sem usar aspartame".
- O algoritmo em ação: com os dados e o objetivo em mãos, o algoritmo de Machine Learning faz o trabalho pesado. Ele analisa um "espaço de soluções" com milhões de combinações possíveis, uma tarefa que seria impossível para um ser humano. Ele não apenas testa proporções, mas também identifica interações não-lineares: como a fibra A pode reduzir a sinérese no iogurte B apenas quando a proteína do soro C está a uma concentração específica.
- A predição e a validação humana: o sistema não entrega uma única "resposta mágica". Ele oferece as formulações mais promissoras, ranqueadas por probabilidade de sucesso. É aqui que o cientista de alimentos volta ao centro do palco, pegando as 2 ou 3 melhores sugestões do algoritmo e validando-as na bancada. O ciclo de P&D que antes levava meses e centenas de testes, agora pode ser reduzido a semanas e um punhado de validações.
O campo de jogo da IA: da redução de açúcar à vida de prateleira
A aplicabilidade desta tecnologia abrange todas as categorias da indústria alimentar, resolvendo problemas clássicos de forma inovadora.
Para criar um refrigerante ou um produto de confeitaria com menos açúcar, a IA pode encontrar a combinação ideal de fibras (inulina, polidextrose), edulcorantes de alta intensidade e agentes de corpo para mimetizar o mouthfeel e a doçura do açúcar, sem deixar um sabor residual desagradável. Já em pães (especialmente sem glúten), a IA pode analisar a sinergia entre diferentes hidrocoloides (HPMC, psyllium, goma guar) e enzimas para maximizar a retenção de humidade, o volume do pão e a vida de prateleira.
No desenvolvimento de maioneses light, molhos ou licores cremosos, os algoritmos são capazes de prever o sistema de estabilização mais eficaz e de menor custo para prevenir a separação de fases ao longo do tempo, considerando a interação entre gomas, amidos e proteínas.
Ao incorporar proteínas vegetais, vitaminas ou minerais que trazem sabores indesejados, a IA, utilizada por grandes casas de aromas, pode analisar vastos bancos de dados de moléculas de sabor para prever os agentes de mascaramento mais eficientes.
Vozes da indústria: quem já está a usar a tecnologia
Embora as startups do setor plant-based sejam as mais integradas ao uso de IA, as grandes empresas tradicionais e os fornecedores de ingredientes também estão a internalizar esta tecnologia de forma decisiva.
Empresas como a Nestlé, Danone e a Unilever possuem equipas dedicadas a essa área nos seus centros de P&D globais. Elas usam modelagem preditiva para acelerar tudo, desde a otimização da estabilidade de iogurtes até ao desenvolvimento de novas bases para sopas e caldos com teor de sódio reduzido.
Contudo, a adoção da IA não é isenta de barreiras. O investimento inicial em software, a necessidade de gerar bancos de dados massivos e precisos, e a contratação de talentos com conhecimento em ciência de dados são desafios significativos. Além disso, existe o debate sobre o "efeito caixa-preta", onde o algoritmo sugere uma solução sem que se compreenda totalmente o "porquê" por trás da sinergia.




























