A crise do ultrarprocessado: como a indústria de ingredientes pode ser a solução (e não o problema)

Uma nova classificação de alimentos está redefinindo as expectativas dos consumidores e colocando os fabricantes sob pressão. Longe de ser apenas mais um desafio, esta mudança representa a maior oportunidade de inovação para a indústria de ingredientes das últimas décadas. Um termo que até há poucos anos era restrito a círculos acadêmicos é agora o centro de todas as estratégias de P&D: "ultrarprocessado". Impulsionada por estudos de grande impacto, pela cobertura mediática e por guias alimentares nacionais, a aversão a produtos com longas listas de ingredientes de nomes "químicos" tornou-se um movimento global. Para a indústria alimentar, o que antes era uma prática padrão para garantir segurança, sabor e acessibilidade, é agora um passivo de marketing.
Contudo, por trás da crise de imagem, emerge uma revolução silenciosa. A indústria de aditivos e ingredientes, muitas vezes vista como a "vilã" nesta narrativa, está se posicionando como a principal facilitadora da mudança. Através da biotecnologia, da ciência de materiais e de um profundo conhecimento botânico, os fornecedores estão desenvolvendo uma nova geração de ingredientes que permite criar produtos convenientes, estáveis e saborosos com rótulos drasticamente mais limpos.
Descodificando o inimigo: o que é a classificação nova?
Para entender a transformação, deve-se entender o seu catalisador. A classificação NOVA, desenvolvida por pesquisadores da Universidade de São Paulo, não categoriza os alimentos pelos seus nutrientes (gordura, açúcar, sal), mas sim pelo seu grau de processamento industrial. Ela divide os alimentos em quatro grupos:
- NOVA 1: Alimentos in natura ou minimamente processados (frutas, vegetais, grãos, carnes frescas).
- NOVA 2: Ingredientes culinários processados (óleos, sal, açúcar).
- NOVA 3: Alimentos processados (combinações dos grupos 1 e 2, como pães artesanais, queijos, conservas).
- NOVA 4: Alimentos ultrarprocessados. É aqui que reside a controvérsia. Estes são definidos como formulações industriais feitas maioritariamente ou inteiramente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amidos, isolados proteicos), juntamente com aditivos para potenciar cor, sabor e textura. Exemplos clássicos incluem refrigerantes, snacks embalados, refeições prontas e produtos de panificação em massa.
O problema para a indústria não é o processamento em si, que é essencial para a segurança alimentar, mas a percepção de artificialidade que o rótulo do grupo NOVA 4 carrega. O consumidor moderno não quer ver no rótulo ingredientes que não consegue identificar ou que não teria na sua própria cozinha. A questão passou de “o que está neste produto?” para “como este produto foi feito?”.
A inovação como resposta: O novo arsenal dos formuladores
É neste cenário que a inovação em ingredientes se torna a protagonista. As empresas já não procuram apenas um emulsificante ou um conservante; procuram "soluções de funcionalidade com rótulo limpo".
1. Substituindo aditivos sintéticos com a natureza
A demanda por substitutos para nomes como carboximetilcelulose, sorbato de potássio ou BHT está a impulsionar o mercado de extratos vegetais e fermentados.
- Conservantes naturais: extratos de alecrim e de chá verde, ricos em antioxidantes, estão a ser cada vez mais utilizados para proteger contra a oxidação em produtos cárneos e snacks. A natamicina, um produto da fermentação, e outras culturas protetoras estão a substituir conservantes químicos em laticínios e panificação, inibindo o crescimento de mofo de forma natural.
- Texturizantes e emulsificantes: a busca pelo substituto da metilcelulose levou a uma explosão de inovação em fibras. Fibras cítricas, por exemplo, através de processos de refinação mecânica, adquirem uma capacidade notável de reter água e óleo, replicando a função de emulsificantes químicos em molhos, sobremesas e análogos de carne. Da mesma forma, farinhas e amidos funcionais (de arroz, tapioca, batata) estão a ser processados termicamente para fornecer viscosidade, cremosidade e estabilidade, sem a necessidade de uma designação "química".
2. Redução de açúcar e sódio sem sacrificar o sabor
A reformulação vai além da remoção de aditivos. A pressão para reduzir os "ingredientes críticos" é imensa.
- Sistemas de sabor: para reduzir o sódio, os flavor houses estão a desenvolver extratos de levedura e pós de cogumelos ricos em umami, que amplificam a perceção de salgado, permitindo reduções de até 30% no teor de cloreto de sódio. O cloreto de potássio, outrora limitado pelo seu sabor amargo residual, é agora combinado com mascaradores de sabor naturais para se tornar uma solução viável.
- Corpo e textura em produtos "light": ao remover açúcar e gordura, perde-se mais do que doçura e riqueza — perde-se corpo e textura. Fibras solúveis, como a inulina (da raiz de chicória) ou as fibras de aveia, não só adicionam um apelo de saúde intestinal (prebiótico), como também reconstroem a viscosidade e o mouthfeel perdidos, tornando a experiência de consumo de um iogurte magro ou de uma bebida de baixas calorias muito mais satisfatória.
O desafio do equilíbrio: O ponto de vista do P&D
A transição não é simples. Cada ingrediente removido precisa ser substituído por uma solução que, muitas vezes, é mais cara e tecnicamente mais complexa de manusear.
Substituir um fosfato num produto de carne para reter humidade é um desafio: é possível usar uma combinação de fibras e amidos, mas a interação com a proteína é diferente, o comportamento durante o cozimento muda. Isso exige meses de testes, ajustes de processo e um profundo conhecimento da ciência por trás dos ingredientes.
O futuro é limpo e transparente
A crise do ultrarprocessado está forçando a indústria a evoluir e acelerando a pesquisa em bioprocessos. Isso também ajuda a valorizar a ciência botânica e a criar uma colaboração mais profunda entre fabricantes de alimentos e seus fornecedores de ingredientes.
As empresas que prosperarão não serão aquelas que lutam contra a tendência, mas aquelas que a abraçam como uma oportunidade para inovar e reconstruir a confiança do consumidor. O ingrediente deixou de ser apenas um item funcional numa fórmula; tornou-se o principal contador de histórias de um produto, comunicando saúde, naturalidade e transparência.




























